A gente já tá indo embora, mamãe?
Apesar da empolgação em voar de novo, não pode conter as lágrimas. Ainda no aeroporto de Guarulhos, pouco antes do guichê de apresentação dos passaportes, o meu mais velho indagou a frase acima com uma cara de choro, voz embargada e lágrimas nos olhos de cortar qualquer coração. Desta vez, o meu primogênito teve que começar a lidar com as saudades. E acredito que tenha sido isso que tornou essa despedida ainda mais árdua do que todas as outras que já vivi até agora.
O mês de maio foi recheado de pão de queijo, pastel e paçoca.
Na primeira semana do mês, ainda na Alemanha, uma ansiedade só. Até comemos arroz com feijão para já começarmos a entrar no clima. Partimos dia sete e pisamos em solo alemão de volta só no dia 29. Foram três semanas de muita intensidade, muito arroz com feijão e farofa, muita praia, muito barulho, muitos beijos e abraços.
No entanto, a realidade é clara: não dá para ter tudo. A gente até tenta trazer um pouco do Brasil para cá — Caetano ou Elis no rádio, arroz com feijão no prato, goiabada com queijo de sobremesa — e levar um pouco da Alemanha para lá — rotina estruturada, müsli de café da manhã, passeios na natureza em silêncio — mas não é igual. Conhecer mundos diversos é enriquecedor, mas ter que escolher abdicar de uma parte deles constantemente nos arranca um pedaço que nos faz sentir pobres.
Eu sei, eu sei. Você vai me falar que é tudo uma questão de perspectiva. Sempre é, você tem razão. Mas poxa, como é duro aceitar as circunstâncias como são! Como é duro acolher a vida como ela é! Como é duro fazer as pazes com o que escolhemos viver!
São catorze anos longe do país onde eu nasci e cresci. Ah, meu Brasil…meu Brasil brasileiro. Que bom que te carrego comigo. Até chamo ainda de casa, mas é fato que me sinto em casa em muitos lugares. Nunca vou me esquecer de quando há uns sete anos, senti que estava voltando para casa num avião com direção à Alemanha. Descobri, enfim, que casa mesmo é a gente. O nosso corpo. O nosso templo. O crucial é sentir-se bem com quem se é. Uma vez conquistado isso, todo lugar é lar. Contudo, nos faltam as pessoas. Sei que as levo comigo também, já disse Saint-Exupéry: aqueles que passam por nós não vão sós, deixam um pouco de si, levam um pouco de nós. Mas não é igual. Falta um abraço, um beijo, um carinho, um cheiro. Falta o calor.
Imagino que tenha sido isso que meu primogênito gostou tanto: do calor das pessoas, da alegria, do amor de família. Diferente do que eu havia previsto, ele se sentiu muito à vontade na minha terra natal. Se não fosse pela sua aparência de deus nórdico — com seus cabelos quase brancos de tão loiros e seus olhos azuis cristalinos, diriam que é um verdadeiro brasileirinho.
Meu deus, como ele gostou dessas últimas três semanas! Foi uma farra só. Aliás, a vovó virou seu xodó. Desde o primeiro dia, veio me acordar perguntando se podia ir até o quarto dela. Quando descobriu que tinha o passe livre, nem veio mais perguntar nada. Acordava e já ia direto encontrá-la. Aonde ela ia, ele ia atrás. Isso quando não era ele quem dava as coordenadas.
Além disso, a cada dia eu me impressionava mais com o seu português. Quantas expressões novas, quantas antigas que guardava em sua memória! Depois desses vinte e um dias, ele ficou ainda mais fluente no idioma. Eu até me assustei quando notei que ele usava com toda a naturalidade um “né” no final de cada frase. Tá frio hoje, né mamãe? É difícil abrir esse pote de geleia, né? Parece que vai chover, né?
A cada frase, mais meu coração se derretia. Valeu a pena falar sempre em português com ele durante seus três anos e meio de vida. O mais engraçado era quando as pessoas o cumprimentavam em inglês ou alemão, partindo da ideia de que um menino com essa aparência não deve saber português. Ele ainda não sacou que é por isso, mas já estou até vendo que, no futuro, a reação dele com as pessoas vai nos trazer boas risadas! Que é? Acha que eu não sei falar português, mano?! 😜
Sem falar que ele amou o caos de São Paulo. Há muito a ser descoberto: carros sendo guinchados, caminhões-tanque nos postos de gasolina, bueiros gigantes próximos às calçadas, montanhas de lixo em caçambas, escavadeiras trabalhando. Fora a quantidade de pessoas que o cumprimentavam, perguntavam seu nome e elogiavam seus olhos azuis. Nessa hora, ele sempre se escondia (ótima educação: nada de falar com estranhos!). No entanto, dentro de casa, depois de um primeiro estranhamento comum, ele se soltava e ia brincar sozinho com os tios e primos. Era um pula-pula em colchões e um corre-corre pela sala só! Certamente, alguns desses momentos se tornarão memórias de uma infância feliz.
A gente já tá indo embora, mamãe?
Já, meu filho. Mas eu te garanto que, desta vez, você também está carregando um pedacinho do Brasil com você.
Por detrás desta edição:
Fiquei com vontade de inverter a ordem das coisas. Hoje, a apresentação segue o texto.
Esse é o segundo texto sobre ACEITAÇÃO que prometi para vocês na última edição, na qual narrei sobre aceitar-se quem se é.
O terceiro da série provavelmente também será entregue esse mês, afinal, furei meu cronograma e pulei o mês de maio, por razões óbvias. Já faz mais de uma semana que chegamos em casa, entretanto é como sempre digo: o corpo chega, só que a alma é atrasadinha: ela fica vagando por aí até decidir que está na hora de voltar para o corpo. Até que isso aconteça, a gente fica assim, sem saber por onde começar o dia, muito menos a escrita. Mas tá aí. Num impulso nada planejado, tarde da noite, a escrita me encontrou e o texto saiu.
A próxima edição já está no forninho e será especial demais. Aguardem!
Um beijo,
Daniela 🧡
Dani, mesmo não tendo filhos, me identifiquei muito com seu texto, porque eu sou a família que fica e já viu os olhos marejados da criança que vai (no caso, meus priminhos), é de uma dor sem tamanho.
Com os filhos da minha melhor amiga é a mesma coisa: sempre quando eles vêm eu faço um vídeo para nós vermos no "futuro", ou seja, nas próxima vez que eles vierem, pois 1 ano terá se passado e é sempre bonitinho ver a reação deles.
De fato não dá pra ter tudo, e sim, é muito duro ver essas escolhas "escancaradas". Tanto para quem vai quanto para quem fica. Até que a rotina se acomoda novamente, e tudo parece, de certa forma, como "sempre foi". Seu filho acaba de começar uma série especial de lembranças que o acompanhará em diversos momentos, e ele sabe que é um lugar para o qual ele sempre poderá voltar <3
Ahhh, Dani, que lindo e emocionante deve ser mostrar tua terra natal para o pequeno; e trazer nele, camadas do teu Brasil. Encantada de te ler!